sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Mídia, Religião e Cultura: temas e rumos da área de pesquisa incluem perspectiva latino-americana em conferência internacional

Por Alexandra Gonzalez e Priscila Vieira

A conferência da Sociedade Internacional para Mídia, Religião e Cultura proporcionou o encontro de pesquisadores de dezenas de países de todos os continentes, durante os dias 4 a 7 de agosto, em Canterbury, Inglaterra (foto). Foram apresentados 145 trabalhos de pesquisadores das áreas do jornalismo, publicidade, teologia, letras, web design, além de painéis e palestras. O evento foi pautado pela preocupação em analisar o campo em formação e definir temas relevantes para a atualidade e rumos para as pesquisas a serem desenvolvidas no âmbito da religião, cultura e mídia. Nesse sentido, um dos pontos altos do encontro foi o painel “Reflexões críticas no campo de Mídia, Religião e Cultura”, que propôs questões a cinco pesquisadores de nacionalidades diferentes e campos de origem diversos.

No relato apresentado a seguir, destacamos a fala da Profa. Dra. Magali do Nascimento Cunha, da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e sua apresentação do campo na América Latina e especificamente no Brasil. A escolha deve-se ao fato de que o trabalho apresentado mapeia pontos importantes do campo na realidade nacional e sul-americana, em uma sistematização relevante tanto para o diálogo aberto, no evento, com pesquisadores de outras partes do mundo quanto para a reflexão necessária dos desafios presentes em nosso cotidiano.






Estado do campo

A primeira questão colocada no painel era sobre “o estado atual do campo” e, a partir da realidade latino-americana, a resposta de Magali enfatizou a herança positivista presente especialmente na academia brasileira e outros países do continente, que minimiza a pesquisa em religião, especialmente se fora da sociologia e da antropologia. Apesar das dificuldades, o número de trabalhos em mídia e religião emergiram nas últimas décadas. As reflexões são especialmente sobre produção religiosa de mídia eletrônica, sendo que nos últimos anos apareceram abordagens de estudos de recepção e representações da religião em produções não religiosas. E, ainda mais recentemente, é possível encontrar estudos sobre a presença da religião na internet.

Ainda em busca de mapear o campo, Magali apontou duas lacunas que também são desafios para os estudos na área. A primeira é a falta de trabalhos que enfoquem religiosidades fora da matriz cristã, especialmente o espiritismo e as vertentes afro-brasileiras. Segundo ela, são “dois grupos intensamente presentes em diversos processos comunicacionais, mediáticos ou não, e que têm sido esquecidos pelos estudos de mídia, religião e cultura”. A segunda lacuna está relacionada ao que a professora chamou de “midiacentrismo na maioria dos estudos disponíveis”. Assim, falta no campo o reconhecimento das mediações culturais de processos comunicacionais, o que pode abrir novas e variadas possibilidades de estudos, como os discursos para além da mídia eletrônica, que perpassam música, atitudes, arquitetura, mídia alternativa e popular, representações simbólicas – sejam visuais ou rituais. Ainda outra questão desafiadora abordada é a internacionalização da pesquisa latino-americana. Em âmbito internacional a língua principal é o inglês, o que dificulta os intercâmbios com as produções em português e espanhol. “Há necessidade de melhorar a troca entre sul e norte. Por exemplo, o primeiro artigo de Stewart Hoover em português foi publicado este ano pela revista Comunicação & Sociedade, da Universidade Metodista de São Paulo (“Mídia e religião: premissas e implicações para os campos acadêmico e midiático” acesse aqui). Precisamos encontrar caminhos de superar esse desafio e não nos acomodarmos à língua”, afirmou Magali (no centro da foto do painel).


Questões relevantes

A segunda questão enfrentada no painel solicitava a identificação das “questões preeminentes para lidar no momento”. Nesse quesito, dois principais aspectos foram destacados, ambos relacionados às relações entre religião e esfera pública. O primeiro é o crescimento do pentecostalismo e decrescimento do catolicismo no Brasil, que gera mudanças visíveis nas disputas de poder, nas representações midiáticas, especialmente de pentecostais na política. A candidatura a presidente de um pastor da Assembleia de Deus exemplifica a complexidade do fenômeno, que precisa ser enfrentado em sua complexidade, como uma dinâmica sócio-cultural própria. O segundo aspecto é a emergência de discursos evangélicos conservadores, que chegam à esfera pública em questões como os direitos de mulheres e homossexuais, em conclamações para o trabalho de “salvar a família” e outras justificativas feitas à base de frases de efeito.

Sugestões práticas e provocações 

Por fim, a terceira questão solicitava aos painelistas que apresentassem ideias e provocações sobre formas de lidar com as questões levantadas. A pesquisadora Magali, responsável por levar a perspectiva de sua região, colocou dessa ver três possibilidades de ação. Uma delas seria política, que passa pela articulação das pessoas envolvidas no campo, para fortalecer os espaços de trabalho e conseguir financiamento para pesquisas. O MIRE – grupo de pesquisa em Mídia e Religião, recém criado e registrado no CNPq -, é fruto desse tipo de demanda. A segunda, na área da reflexão e estudo, é a necessidade de romper com a compreensão de que a religião tem um impacto sobre a cultura ou a cultura sobre a mídia e a religião. Ao invés de pensar em termos de impacto, compreender erupções, explosões, fenômenos que emergem na dinâmica social e se alimentam da interação entre mídia, religião e cultura. Finalmente, Magali destacou a necessidade, especialmente no Brasil, de que os pesquisadores superem as abordagens moralista ou dualista dos fenômenos que envolvem mídia e religião, pensando em termos de manipulação dos símbolos sagrados e da boa vontade das pessoas. Esse tipo de postura, em pesquisadores “colocam-se na posição de guardiões da boa religião ou da boa mídia”, impede a compreensão de dinâmicas sociais complexas.

De forma geral, os pesquisadores concordaram sobre a marginalidade do campo, inerentemente de intersecção e interdisciplinar, em relação às outras áreas de conhecimento. Houve consenso também sobre a necessidade de promover novas compreensões da religião, adequadas às expressões contemporâneas do fenômeno. As noções de mediação e mediatização, como destacado por Morgan, também foram ponto de convergência, enquanto temas teóricos fundamentais para o campo que necessitam de maior e mais profunda atenção. A relevância desses temas abre um importante espaço para pesquisadores da América Latina, que trabalham com esse escopo teórico há anos, especialmente pela influência do trabalho de Jesús Martin-Barbeiro.

Outras perspectivas

O norte-americano David Morgan enfatizou a necessidade de revisar o que a área já construiu, em busca de perceber o que foi perdido e direcionar, assim, novos engajamentos. Ele ainda assinalou a necessidade de pensar uma nova teorização da religião, a partir das mudanças em vigor na atualidade. O pesquisador apontou para as noções de mediatização e mediação como possibilidades teóricas de compreensão, que podem trazer avanços para o campo e, em termos práticos, apontou para a necessidade de “incluir outros na conversação, talvez através de fundos para traduzir trabalhos de outras partes do mundo, compartilhar fontes e bibliografia”. Afinal, durante essa conferência, a maioria dos participantes era oriunda da Europa ou dos Estados Unidos, com uma forte influência das questões levantadas em países anglo-saxões. Embora houvesse participantes da África, Ásia e Oceania, a presença de latinos restringiu-se a três palestrantes, que mostraram uma realidade bastante diversa daquela enfatizada na maior parte dos painéis.

Destaca-se ainda a participação da finlandesa Johanna Sumiala, que levou ao plenário a perspectiva dos estudos de mídia e destacou que os temas referentes à religião ainda são marginais. “Há um abismo entre estudos de religião e estudos de mídia, sendo que pesquisadores do campo da religião estão mais interessados na mídia do que o contrário”, afirmou. Para ela, um dos temas desafiadores são as relações global-local, as perspectivas transnacionais e como esses aspectos afetam as interações entre mídia e religião. 

Pesquisadores desafiados à “sensibilidade historicista” 



“Eu quero nos desafiar a um grande senso de historicismo em nosso trabalho”, afirmou em sua palestra o então presidente da Sociedade Internacional para Mídia, Religião e Cultura, Stewart Hoover (foto). Considerado um dos fundadores do campo de intersecção entre mídia e religião, Hoover apontou como as pesquisas na área moveram-se de uma visão instrumentalista de mídia e religião, focada nos efeitos de um sobre o outro para “mais sofisticadas compreensões”, como a prática e a materialidade e o que é produzido através de mediações do religioso. Assim, uma possível definição para o objeto de estudo do campo seria a mediação cultura da religião e a proposta de abordagem, histórica.

Para Hoover, o historicismo pode trazer ao menos três benefícios para o campo. O primeiro é ajudar a corrigir o ‘presentismo’ existente na área. Essa percepção é válida para os trabalhos desenvolvidos no Brasil. Uma breve pesquisa em bancos de teses e dissertações revela a ausência de abordagens e temáticas históricas nas pesquisas de mídia e religião, o que também pode ser averiguado em textos de revisão de campo, também na área de mídia e história[1].

O segundo benefício seria o enriquecimento das narrativas dos trabalhos, no sentido de que a abordagem historicista contribui com a desconstrução e crítica das narrativas recebidas de antemão e que aspiram definir a extensão e os limites do campo. Sobre este ponto, ele enfatizou o quanto “nós estamos sujeitos a uma grande, difusa e ampla narrativa da religião que é um legado do Iluminismo no Ocidente Norte Atlântico”. O problema dessas narrativas, que tocam temas como modernidade, tradição e outros, é a presença subterrânea da ideia que existe algo puramente “religioso” que é ‘ameaçado’ pela modernidade – o que pode ser bom ou ruim, dependendo da perspectiva adotada.

A aproximação historicista dos objetos de mídia e religião teria, então, a intenção de desconstruir essas narrativas e revelar compreensões de foçar históricas, culturais e sociais mais profundas. Nesse sentido, um caminho proposto é o de pensar resistências e interações entre os modelos considerados influentes – como a mídia norte-americana – e as regiões normalmente identificadas como ‘influenciadas’. No entanto, a ênfase seria as transformações e apropriações ocorridas no trânsito. Nesse ponto, ele citou o trabalho de Leonildo Campos, professor da Universidade Metodista de São Paulo, sobre o quadro “Os dois Caminhos” e sua ampla difusão entre protestantes no Brasil, especialmente na primeira metade do século XX [2]. “Nossas lentes historicistas poderiam perguntar como esta imagem, nem tão conhecida ou particularmente proeminente em seus países de origem, chegou a alcançar tal destaque em sua recepção em outro país”, questionou Hoover.

Finalmente, o terceiro benefício seria o alargamento da gama de fenômenos que podem ser contemplados quando procura-se compreender e construir conhecimento sobre a mediação do religioso. Nesse ponto, o pesquisador destacou a necessidade de pensar e estabelecer a religião como um “fenômeno cultural e social único” através da materialidade e da historicidade em detrimento das abordagens confessionais ou teológicas. A questão seria ainda romper com a noção purista de ‘religião’, que pouco contribui com a compreensão especialmente das questões contemporâneas.

A apresentação de Stewart Hoover está disponível integralmente, em inglês, no site do Center for Media, Religion and Culture: http://cmrc.colorado.edu/

Priscila Vieira é Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO (UFRJ) e Alexandra Gonsalez é Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Ambas integram o MIRE - Grupo de Pesquisa Mídia, Religião e Cultura. Fotos: Adam  T. Shreve.


[1] No campo de história e mídia, o termo ‘presentismo’ aparece na análise de Micael Herschmann e Ana Paula Ribeiro, no texto Comunicação e história – interfaces e novas abordagens. In Comunicação e história – interfaces e novas abordagens. Rio de Janeiro: Mauad X; Globo Universidade, 2008. No campo de mídia e religião, dois textos citam o enfoque em fenômenos atuais: CUNHA, Magali do Nascimento. Igrejas e Universidade: uma aliança necessária. In: MELO, José Marques de; GOBBI, Maria Cristina; ENDO, Claudia Braun. São Bernardo do Campo: UMESP, 2007b. P;194-213.; e FOLQUENING, V., Ilaídes, L., Arendt, E. D. e Araújo, A. L (2011). Panorama das pesquisas sobre a relação Mídia e Religião realizadas nos cursos de mestrado e doutorado em Comunicação entre 2005 e 2011. Anais do V Congresso Internacional em Ciências da Religião: a religião na mídia e a mídia na religião. Goiás: PUC Goiás.

[2] Ver: Leonildo Silveira de Campos: “O quadro os dois caminhos: uma análise semiótica das mutações no consumo de imagens iconográficas entre protestantes brasileiros”. Disponível em: <http://www.naya.org.ar/religion/XJornadas/pdf/7/7-campos.pdf>.

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